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Artur Nunes, o “Lamento de Angola”, e seu desaparecimento simbólico.
Por Gilbert
Publicado em 28/06/2024 12:15
Música

Quando se fala em resistência e persistência, muitos artistas brasileiros vêm à mente por sua luta contra a ditadura, alguns até exilados. No entanto, este texto pretende lançar luz sobre uma figura africana, cuja trajetória se conecta a um período igualmente brutal, o 27 de maio de 1977, em Angola.

Em 1975, Angola estabeleceu um governo presidencialista, com Agostinho Neto como seu primeiro presidente, um nome crucial para o que viria a seguir. O governo de Neto foi marcado por insatisfações, levando a manifestações em apoio a Nito Alves, então ministro da Administração Interna. Essas tensões culminaram no dia 27 de maio de 1977, quando uma tentativa fracassada de golpe, liderada por Nito Alves, desencadeou uma repressão violenta. Milhares de pessoas foram perseguidas, torturadas e executadas sem julgamento. Entre elas, estava Artur Nunes.

Artur de Jesus Nunes nasceu em Luanda, no Bairro Cuba, município do Sambizanga, no dia 17 de dezembro de 1950. Era o mais jovem de um trio de grandes músicos angolanos, ao lado de Urbano de Castro e David Zé, todos desaparecidos após o golpe de 1977. Nunes morreu antes de completar 27 anos.

Com sua musicalidade marcada pela melancolia e tristeza das cerimônias fúnebres tradicionais de Angola, Artur Nunes expressava, em suas canções, o sofrimento de um povo. Suas músicas eram cantadas principalmente em Kimbundu, língua bantu de Angola, embora também tivesse composições em português. Sua obra foi preservada e restaurada em projetos como a compilação “Soul of Angola: Anthologie de la musique angolaise 1965/1975”, lançada na França em 2001, e no álbum “Presidente Neto”, de 2000, onde suas lamentações ecoam em 11 faixas.

Entre as canções mais notáveis do álbum Presidente Neto, destaca-se “Tia”, uma homenagem à sua mãe. Na música, Nunes narra como sua mãe o chamava com um assobio, revivendo também uma lembrança de seu avô “Nga Lumingo” (Kimbundu para Domingos), que o salvou quando ele quase morreu engasgado com uma espinha de peixe. A frase final da canção é uma reflexão sobre a vida e a importância das amizades:

“Kamenekenu ku tabule, kamba dyá henda”

(Devemos cumprimentar os amigos de coração à mesa)

Outra faixa de destaque é “Belina”, onde o cantor expressa um profundo lamento pela morte de uma jovem grávida. Há especulações de que Belina teria sido uma paixão de Artur, assassinada após engravidar de um “falso amigo”, conforme ele sugere na letra da música.

Após o golpe de 1977, Artur Nunes, assim como muitos outros, foi vítima da perseguição. Seu desaparecimento físico quase resultou em seu esquecimento. A guerra civil angolana contribuiu para a desestruturação dos circuitos musicais, mas foi apenas após a paz e reconciliação nacional, em 2002, que sua obra começou a ser resgatada e reconhecida por sua qualidade musical.

O programa Caldo do Poeira, da Rádio Nacional de Angola, desempenhou um papel crucial nessa recuperação. Em 12 de dezembro de 2004, a 33ª e última edição do ano do Poeira no Quintal homenageou Artur Nunes, reunindo contemporâneos como Zecax e Joy Artur em uma emocionante celebração de sua obra.

Atualmente, a influência de Artur Nunes permanece viva em Angola. Artistas da nova geração, como Yuri da Cunha, Bruno de Sousa, Klaudio Hoshai e Irina Vasconcelos, mantêm suas canções presentes no imaginário cultural. Sua música “Tia” foi incluída na trilha sonora do filme Rebelle, de Kim Nguyen, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2013. Além disso, suas letras continuam a ecoar na música contemporânea angolana, como nos samples usados pelo Conjunto Ngonguenha no rap, evidenciando a conexão de Nunes com a realidade ainda dura do país.

 

Artur Nunes pode ter desaparecido fisicamente, mas seu lamento ressoa até hoje, lembrando-nos das feridas abertas na história de Angola.

 

 

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