“A música sou eu. Eu sou a música.” essa frase dita pelo “Bruxo dos Sons” Hermeto Pascoal, que aos 88 foi o primeiro músico brasileiro homenageado na Worldwide Music Expo, a WOMEX, que é o encontro mundial de apoio e desenvolvimento de produções e eventos musicais. nesse texto iremos relembrar e homenagear essa lenda da música mundial e provavelmente um dos maiores músicos da história.
O mundo recebeu Hermeto em 1936 no município de Lagoa da Canoa em Alagoas, um prodígio da música brasileira que Elis Regina, em uma de suas declarações mais icônicas, resumiu assim: “Ele é um deus que nasceu nas Alagoas.” Ao longo de sua carreira, estima-se que Hermeto tenha composto mais de dez mil músicas, um acervo monumental que inclui desde peças solistas até sinfonias, passando por big bands e música de câmara.
A obra de Hermeto se destaca pela abrangência e pela capacidade de unir sons naturais e folclóricos a estruturas musicais complexas. Seu trabalho envolve tanto elementos “primários” — como sons da água, vozes de animais e ruídos corporais — quanto recursos sofisticados como o atonalismo e a politonalidade. No meio dessa ampla gama de referências, encontram-se o folclore nordestino, o forró, o choro, a bossa nova e o jazz, com todos esses elementos sendo moldados pelo improviso característico do artista.
Desde criança, Hermeto mostrou sua inventividade de maneiras pouco convencionais. Ele criava sons a partir de materiais inusitados, como o ferro-velho do avô, e construía pífanos de cano de mamona para se comunicar com os passarinhos. Aos oito anos, começou a tocar a sanfona de oito baixos do pai, e, quando sua habilidade foi notada, seu pai vendeu uma vaca para comprar uma nova sanfona, formando o duo “Galegos do Pascoal”, que animava bailes na região
Em sua juventude, Hermeto e seu irmão Zé Neto foram trabalhar na Rádio Jornal do Comércio, no Recife, onde Hermeto integrou o regional de choro do violonista Romualdo Miranda, irmão do bandolinista Luperce Miranda. Ali, conheceu também Sivuca, com quem formou o trio “O Mundo Pegando Fogo”. Esse encontro marcou o início de uma colaboração intensa e ampliou o repertório dos irmãos.
Após a ida de Sivuca ao Rio de Janeiro, o trio se desfez, e Hermeto passou a atuar como pandeirista na rádio, sob o apelido de “Sivuquinha do Pandeiro”. Mesmo realizando bem a função, Hermeto sentia-se limitado. Jackson do Pandeiro, uma lenda do forró, aconselhou-o a focar na sanfona, o que o levou a uma suspensão temporária. Transferido para a filial em Caruaru, Hermeto, já dominando harmonias modernas, impressionou Sivuca, que intercedeu para que ele retornasse ao Recife e recebesse um aumento.
Em 1958, Hermeto mudou-se para o Rio de Janeiro com sua esposa, Ilza, e integrou o Regional de Pernambuco do Pandeiro na Rádio Mauá. Apesar do caráter inovador de sua música, ele se adaptava naturalmente ao grupo de choro. Cada vez mais sólido musicalmente, Hermeto tocava nas noites cariocas, primeiramente ao lado do violinista Fafá Lemos e depois na orquestra do flautista Copinha.
Em 1961, Hermeto migrou para São Paulo, onde passou a tocar flauta e piano no grupo Som Quatro, com sonoridade samba-jazz. Em seguida, formou o Sambrasa Trio e gravou sua composição “Coalhada” no álbum *Em Som Maior*, de 1965. Em 1966, juntou-se ao baterista Airto Moreira, Theo de Barros e Heraldo do Monte para fundar o Quarteto Novo, inicialmente como apoio ao cantor e compositor Geraldo Vandré, marcando um novo capítulo em sua carreira criativa e inovadora.
Sua trajetória como autodidata merece atenção. Quase cego, Hermeto precisou desenvolver seu próprio método de aprendizado musical. Sua necessidade de auto educação contribuiu para o surgimento de um sistema composicional original e complexo, capaz de incorporar a aleatoriedade dos sons do mundo.
A genialidade do ‘’bruxo dos sons’’ não ganhou destaque somente no cenário musical brasileiro. Não suficiente sua habilidade em tocar instrumentos musicais variados como sanfona, piano, gaita, acordeão, flauta e escaleta, um dos traços mais marcantes das composições de Hermeto é a utilização de qualquer tipo de objeto casual em suas músicas. A ficha técnica de seus álbuns muito comumente contém chaleiras, copos d’água, berrantes, canos PVC, e uma infinidade de coisas.
Para além da musicalidade, Hermeto também possui um carisma gigantesco. Uma das histórias icônicas do artista se deu junto ao renomado trompetista e compositor norte-americano Miles Davis. O encontro ocorreu no show de Airto Moreira, percussionista e amigo de ambos. Miles abordou Hermeto, que, a princípio, por não conhecer o trompetista, pensou estar sendo paquerado. Ao final do show, após se conhecerem melhor, perceberam diversos pontos em comum e começaram uma amizade muito peculiar. Mesmo que recém-conhecidos, Miles convidou Hermeto para sua casa. Este acontecimento teria um desfecho completamente inusitado: uma luta de boxe em plena residência. O jazzista norte-americano era apaixonado por boxe, e convidou seu mais novo amigo para uma luta em um ringue que tinha em casa. Hermeto relata ter dado um cruzado em pleno rosto de Davis, o que, para ele, consolidava o início de sua nova amizade. O fascínio de Miles Davis pelo compositor brasileiro era tão grande que, durante uma entrevista à rádio francesa, ao ser perguntado sobre quem gostaria de reencarnar, se pudesse escolher, o trompetista afirmou que gostaria de renascer como um músico brasileiro, tal qual seu amigo ‘’albino louco’’.
Em sua vasta discografia, Hermeto produziu álbuns clássicos tal qual ‘’Hermeto’’, ‘’Slave Mass’’, ‘’Zabumbe-Bum-A’’, ‘’Grandes Mestres da MPB’’, ‘’Hermeto Pascoal & Grupo’’ e músicas mais icônicas ainda, dentro e fora dessas coletâneas como: ‘’Música da Lagoa’’, ‘’Bebe’’, ‘’Chorinho pra Ele’’, ‘’São Jorge’’ e ‘’Forró pela Manhã’’, tendo composições tocadas por orquestras brasileiras e do exterior. Em sua história, acumulou prêmios e honrarias, alguns deles foram: prêmio APCA de Melhor Solista de Música Popular, em 1973 e o Grammy Latino na categoria de Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras no ano de 2019. Foi homenageado na 4ª edição da FMCB (Festival de Música Contemporânea Brasileira) em 2017 e recebeu 4 vezes o título de Doutor Honoris Causa pelas: New England Conservatory, em 2017; Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em 2022; Juilliard School (Nova York), em 2023; Universidade Federal de Alagoas (UFAL) em 2024.
Em 2024 Hermeto lançou o álbum “Pra Você, Ilza” em memória de sua amada esposa Ilza da Silva, que partiu a 24 anos atrás. Neste álbum o Bruxo mantém sua identidade nos instrumentos e o uso de objetos e do corpo como formas de musicalizar o universo, de maneira que só o Hermeto faz, essa obra é uma carta de amor a sua querida Ilza onde Hermeto comentar:
“Tudo o que eu fiz, tudo o que eu faço, tudo o que eu continuo fazendo, a Dona Ilza está presente, maravilhosamente presente. A Dona Ilza sempre esteve presente para mim, para me ajudar de todas as maneiras. Que maravilha e graças a Deus estou aqui. E ela está lá onde Deus a levou. (…) O nosso amor, o nosso espírito, a nossa alma continua junto. Todos continuam desabando”, reflete Hermeto.
Todas as 13 faixas do álbum foram tirada de um caderno de composições dedicado a Dona Ilza, Inicialmente, ele optou pelas primeiras páginas, repletas de choros; no entanto, fiel à sua genialidade e à sua capacidade de transcender limites, incorporou outros ritmos universais ao projeto, junto com seu grupo formado por André Marques (piano), Jota P (saxofone), Itiberê Zwarg (baixo), Ajurinã Zwarg (bateria) e Fábio Pascoal (percussão). O álbum também foi lançado em LP e distribuído mundo afora. Nas palavras do próprio Hermeto, esse álbum “é um presente para vocês todos, de todos nós aqui. Pra quem quiser e pra eterna patroa, Dona Ilza.”
Aos 88 anos ver o Bruxo apresentar o seu 25° álbum e mantendo a sua musicalidade e experimentando coisas novas e com uma produção impecável, desse que para nós é o maior musico de todos os tempos.