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Vaughn Benjamin, o Xamã do Rastafari
Por Gilbert
Publicado em 28/04/2025 14:58 • Atualizado 28/04/2025 15:00
Música

Para início de conversa, venho por meio desta dizer que foi de imensa dificuldade iniciar a escrita deste texto, pois Vaughn e seu legado são de importância única na vida deste que vos fala. E sua partida em novembro de 2019, aos 50 anos, foi uma perda imensurável para o reggae como gênero musical e modo de vida. Dito isso, vamos lá!

 

Vaughn Benjamin nasceu em 1969 em Antigua, no caribe, mas foi bem novo para St. Croix, nas Ilhas Virgens junto de seu irmão Ron Benjamin, onde em 1989 eles fundaram a lendária banda Midnite, que tinha como principal característica os discursos contundentes traduzidos em uma atmosfera mística impossível de descrever, só quem já presenciou um show ou viu alguma performance da banda ao vivo entendem essa afirmação. Onde a banda, como um todo, entendiam que Midnite não se tratava apenas das músicas, se tratava de um modo de vida pleno, a conexão entre pensar, falar e estabelecer um senso de coletividade. 

 

Vaughn entendia que se precisava de uma conscientização coletiva e entendia que os grandes erros da sociedade foram causados por modelos socioeconômicos que se baseiam na superprodução e exploração de povos e etnias, o que é explicitamente nítido em suas obras. um “Rastaman” da criação que incorporou cinco mil anos (e mais) de civilização humana em palavras, frases, mantras e parábolas. Passado, presente e futuro se fundiam nas profundas percepções e sabedoria que ele proclamava nas centenas de letras que escreveu. Os fundamentos da Bíblia, mas também os escritos apócrifos e obras filosóficas antigas, eram entrelaçados com a realidade contemporânea. De Sêneca e o Evangelho de Maria Madalena à ciência molecular à análise econômica. Do amor, compaixão e redenção a Maquiavel, trigonometria e o poder da mídia. Tudo e todos estiveram conectados ao longo dos anos. No vasto e exuberante mundo do conhecimento, Vaughn Benjamin foi um guia extraordinário, o homem que abriu os olhos dos ouvintes para as maravilhas e milagres da natureza, mas também para as ilusões e paixões do homem ignorante, dando a ele o título de Xamã do Rastafarianismo.

 

O primeiro álbum da banda foi em 1997, chamado “Unpolished”, que traz consigo toda a carga dos ensinamentos de Tafari Makonnen, nome de batismo do Imperador da Etiópia Haile Selassie entre os anos de 1930 e 1974. Toda carga de resistência a qual Tafari enfrentou em 1935 quando Benito Mussolini e suas tropas invadiram e dominaram a Etiópia, apesar da resistência liderada por Haile Selassie, as tropas etíopes não conseguiram vencer o domínio. Apesar da derrota territorial, havia uma grande resistência da população a se sujeitar aos líderes e aos moldes culturais europeus. Foi neste momento em que a profecia feita por Marcus Garvey tempos antes fez sentido para aqueles que hoje seguem o modo de vida Rastafari, onde ele diz:

 

 "Olhem para a África, onde um rei negro vai ser coroado, anunciando que o dia da libertação estará próximo". 

 

Não se sabe dizer se esse “Rei Negro” se tratava de Tafari, ou melhor, Ras Tafari. E daí vem o nome Rastafari, onde a nomenclatura ‘Ras’ significa Rei, porém Tafari optou por trocar seu nome para o que conhecemos um pouco mais, o Haile Selassie. 

 

Do álbum, destaco a faixa “Bushman”, onde Vaughn se vê como um bosquímano, que quer dizer “Homem do Bosque”, que se trata de uma etnia onde sua maioria reside na Botsuana, África Ocidental. Um povo que foi comprovado que vive a mais de 20 mil anos nessa região e que descendem de uma linha direta dos primeiros seres humanos que evoluíram no sul do continente africano. Na Faixa Vaughn diz: 

 

“Você precisa entender, você do continente africano, assim como os negros americanos, levantem-se, a sinceridade é sua irmã, eles te desumanizaram e tomaram seu nome, eles te alimentaram com porcos e nutriram sua desonra, hoje você seria somente o mesmo, levante-se, assim como as pessoas que você desrespeita e desdenha você vem sofrendo lavagem cerebral para chamar um ao outro de bosquímano, mas eu sou um bosquímano”. 

 

O pan africanismo é evidente em suas letras e posicionamentos políticos desde os primeiros álbuns da banda e em seus mais de 70 álbuns deixados e as mais de 1.500 letras e poemas escritos, é possível encontrar grande partes destes poemas em seu livro de 2005 intitulado “Kool Pekude”. Outra característica importante é a sua crítica ferrenha a indústria musical, onde seus dois primeiros álbuns foram feitos em apenas 2 canais, um para sua voz e outro para a banda inteira, o que traz uma sonoridade única, o que ele dizia que se a banda como um todo se rendesse às gravadoras eles perderam a essência e sem a essência a banda não teria mais significado. Além disso, Vaughn fazia a defesa de que a Etiópia foi o berço da humanidade e o continente africano foi o berço das evoluções tecnológicas e das ferramentas que usamos nos dias atuais e culpa o colonialismo europeu através de questionamentos em suas obras.

 

“Matemática é uma ferramenta deles, filosofia é uma ferramenta deles, roubar nosso conhecimento é uma ferramenta deles”.

 

Em 2014 Vaughn encerra sua passagem pelo Midnite com o álbum “Beauty For Ashes”, onde ele se separa de seu irmão Ron, que segue com a cantora Dezarie, conterrânea dos dois, e Vaughn funda a banda Akae Beka.

 

Essa nova banda tem uma revisão de seus pensamentos e um teor mais intimista e pessoal, onde seus shows duravam cerca de 3 a 4 horas, com momentos de diálogo e reflexões com o público.

 

10 anos depois de sua passagem pelo Midnite, em 2024, é lançado o último álbum de estúdio de Vaughn Benjamin com o título “Living Testament” que na sua tradução significa algo como “Testamento vivo”. Carregado de reflexões sobre sua caminhada por esse plano e indicando que já estava partindo, mas para uma missão, mas a missão deste plano ainda não estaria acabada e a luta está longe de terminar.

 

Escutar esse álbum póstumo foi uma tarefa extremamente difícil, mas cada segundo dele é uma aula, um privilégio e um aprendizado. uma musicalidade única de um ser único que tive a oportunidade de apreciar toda a sua obra. e no fim das contas só resta agradecer por esses 72 álbuns e pelos bons frutos musicais que se inspiraram em Vaughn como Zabah Bush, Solano Jacob e Nazireu Rupestre aqui no Brasil, inclusive Vaughn produziu e participou do álbum “Fé” do Zabah Bush em 2013. Outras bandas como Groundation, Pressure e toda a nova geração do novo Roots Reggae jamaicano, que apesar de enxuta, com Jesse Royal, Protoje e Chronixx, é de extrema importância. Assim como o projeto cultural “Dub in a Rainforest” e “Dub in Fish Market” criados por Vaughn e o ex-atleta olímpico e advogado formado em Harvard, Laurent "Tippy I" Alfred, também das Ilhas Virgens. Onde o intuito do projeto é fomentar a cultura local e preencher os espaços da cidade.

 

Vaughn se foi, mas seu legado vive e resiste, suas mensagens reverberam com intensa pressão no novo reggae raiz e seus ideais pan africanistas serão sempre admirados. A carne se foi, mas as mensagens ditas por ele são eternas.



Nota: A invasão da Etiópia pela Itália fascista, liderada por Benito Mussolini, ocorreu em 3 de outubro de 1935, marcando o início da Segunda Guerra Ítalo-Etíope. Este evento, que culminou com a ocupação italiana da Etiópia em 1936, teve um impacto significativo na política internacional e na formação do cenário da Segunda Guerra Mundial.

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